Sunday 23 November 2008

Juanita Wilder


Não sei quem lhe pôs o cognome com sabor a rebeldia e faroeste, mas o certo é que pegou. É uma outsider, uma maverick. O único varão da família azucrinou-lhe a infância e a adolescência garantindo a quem queria ouvir (e sobretudo a quem não queria) que ela foi encontrada "nas látchinhas", maldade com a presciência de que ela, a mais novinha, é a mais independente e original de todos nós. Não se deixem enganar pelas fotografias de bebé: sim, é igual à outra, mas lá dentro mora uma pessoa completamente diferente da quadrilha.

À terceira gravidez os pais deitaram-se a dormir sobre os louros de terem finalmente acertado no rapaz, e tungas, lá veio ela, extemporânea como as flores mais bonitas e os frutos mais doces. Sim, que aqui a vontade dos progenitores não conta para nada: quem conhecer a Joana sabe que ela é capaz de qualquer coisa que se lhe meta na cabeça, e se queria nascer não eram uns meros cálculos economicistas que a iam impedir. Humpfff!

Era tão bonita que precipitou um aviso de uma comadre transmontana disfarçado de elogio: "Se quiserem casar as outras, têm de esconder esta na arca!" (1). Não lhe chegava: tinha de ser diferente. Bem podia o José Barata Moura cantar "come a papa, Joana come a papa": recusava quase tudo. Era um tormento convencê-la a comer: tirando melancia, uns fiozinhos de esparguete nos dias bons e o ocasional copo de leite, recusava de boquita fechada qualquer alimento transportado em colheres aladas. "Um, dois, três, uma colher de cada vez. Quatro, cinco, seis, era uma história de reis, e uma colher de papa". O avião falhava o alvo, dava mais umas voltinhas, na esperança de que a aerogare abrisse eventualmente as portas, para desistir, com falta de combustível e os nervos do piloto arruinados. Então sorria, muito satisfeita. Sem maldade, como quem se limita a cumprir a parte que lhe toca na brincadeira.

Mas era roliça e saudável, testemunho da infinita resiliência das criancas, e hoje tem um apetite que paga com juros especulativos as dívidas da infância, como já avisava na altura a mãe.

Era avessa a quaisquer espartilhos ou regras sociais. Deixava-se vestir para minutos mais tarde a irmos encontrar, completamente nua, no jardim. Tinha sempre calor. À noite, na terceira cama do dormitório das raparigas, cantava para ela mesma, baixinho, até adormecer. Eu e a outra tentávamos calá-la, primeiro às boas ("Joaninha, temos de dormir"), depois com ameaças progressivamente mais duras. Era surda a todos os argumentos: calava-se uns minutos e depois recomeçava, lá-lá-lá-lá-lá. Acabávamos a rir-nos à socapa daquela coisinha que cantava tão bem, teimosa e auto-suficiente. Ou torcida, como vaticinava a mãe. O pai, esse, disfarçava como podia que esta era a menina dele – compensando ausências? Ela usou e abusou do poder.

Nós contrariávamos-lhe as tentações imperialistas garantindo-lhe que "isto não é de Joana". Mas era.

Mal pôde, livrou-se de nós: quando houve uma vaga para um quarto, no primeiro apartamento do Porto, ocupou-o com os seus livros, peluches e diário muitas vezes devassado (mas essa história ela conta-a melhor que ninguém), saltando por cima de hierarquias e direitos de primogenitura. Fez alianças com a sósia, mãe postiça que lhe dava banho em pequenina e nunca sofreu a tentação de a fazer vergar, como outras ditadoras. A casa dividia-se entre "elas" e nós, e ainda hoje, depois de ter feito amplas pazes comigo, cultiva clivagens com o "menino".

Com estes ingredientes fresquinhos, não houve cozinheiro que estragasse o caldo (e olhem que muitos tentaram). É o despacho em figura de gente: resolve qualquer problema enquanto o diabo esfrega um olho e ganhou por isso mais um cognome, o Helpdesk da família (sim, quem é que acham que criou este tasco em menos tempo do que o mafarrico leva a dizer "fiat blog"?). Durante anos era ela que as pessoas ouviam quando ligavam para o atendedor de chamadas lá de casa. De todos, é a que me dá menos preocupações: if there's a will, there's a way, e ela sabe o caminho com uma sabedoria instintiva. Foi a primeira a ousar mudar de rumo na Faculdade, e quando tentou encontrar emprego para ocupar as horas mortas arranjou logo três. Pode demorar, mas ela chega sempre lá. É uma figura, garantem as primas brasileiras. Conquista-me todos os namorados e tem em cada casa por onde passo uma suite baptizada "Juaninha’s bedroom". Detém o recorde absoluto de vindas ao Luxemburgo no livro de visitas.

Chora muito, queixa-se mais, dá cabo da paciência a um santo e faz-nos rir em directo e em diferido, principalmente a mim. Eu que não mexi um dedo para ajudar a criá-la, desobrigada pela precoce vocação maternal da П, sou agora a maior beneficiária dos talentos dela – nhan, nhan, nhan, nhan, nhan! :-P

Há quem diga que nasceu para nos salvar. Eu acredito.

(1) Disclaimer: Este elogio é tributário de ideias patriarcais segundo as quais o valor de uma mulher se mede pelo número de pretendentes, e não reflecte de modo algum as convicções deste blogue. Para que conste, este blogue não apoia o casamento, que considera um péssimo negócio para as mulheres (e se calhar para os homens também).

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