Friday 21 November 2008

Ao princípio era ela


e não me lembro de o mundo existir antes de ela chegar, tinha eu 11 meses e 23 dias. Nascemos na mesma cidade e no mesmo mês, o mais bonito do calendário, o mês da revolução que chegou 15 dias depois da minha primeira irmã. Todos os anos, durante oito dias, temos a mesma idade, suspensão dos meus direitos de primogénita que sempre nos fascinou.
Ao princípio era só ela, e não distinguíamos onde começava uma e acabava a outra. Suspeitei que fôssemos duas entidades distintas depois da experiência pioneira conduzida na Praça da República, em Viana, com toda a cientificidade possível a duas miúdas de 3 e 4 anos. "Consegues ouvir quando eu tapo os ouvidos?". Conseguia. Repetimos a experiência, com uma preocupação precoce de validação de resultados ("Agora tapo eu os ouvidos"), e confirmou-se que o mundo, afinal, continuava a existir sem nós, que ela continuava a existir sem mim e eu sem ela – descoberta que me causou uma náusea próxima do terror.
Dividíamos tudo: as mãos da mãe quando nos levava ao infantário (ela queria sempre a mão rica, a dos anéis, eu resignava-me à mão despojada, consolando-me com a ideia de que aquela pobre mão me agradecia o sacrifício), partilhávamos os brinquedos e os lápis, o quarto secreto que só existia na nossa imaginação e se abria à noite, desafiando o cepticismo dos pais e os limites da Física para revelar prodigiosas quantidades de peluches e bonecas.
Ao princípio era só ela e ela bastava. Os pais eram nessa altura estranhas criaturas invisíveis da cintura para cima que sofriam do persistente transtorno delirante de que tomavam conta de nós, coitados. Nós fingíamos que sim, que precisávamos deles, mas a verdade é que nos bastávamos uma à outra. A prová-lo, a mãe deixava-nos descer sozinhas a Rua da Bandeira, e nós, entretidas a evitar o risco das pedras da calçada, saltando num passo que nós inventámos ("Não vale pisar o risco!"), não reparávamos que a progenitora ficava ali, vigilante, a ver-nos entrar para o infantário.
Vivíamos num mundo só nosso onde éramos ambas crescidas e autónomas e nos visitavámos uma à outra: ela tinha a "minha Viana", lugar mítico em que só por coincidência as fronteiras coincidiam com a terra natal, num desdobramento geográfico muito borgiano, eu tinha o "meu Regato", palavra deliciosa que evocava espaços a perder de vista ao som crepitante da água. Era lá que vivíamos a maior parte do tempo, com o cuidado de regressar quando havia adultos por perto, essas criaturas pernilongas ignorantes dos encantos do mundo e por isso irremediavelmente tontas.
O mundo tinha sido feito a pensar em nós: as bicicletas vinham com rodinhas, a mesa de fórmica na varanda que dava para o arvoredo tinha a nossa altura, e os dois bancos pré Toys-R-Us que faziam conjunto tinham sido serrados à nossa medida: o mais pequenino para ela, o maior para mim. O pai sentava-se na bicicleta e dava-nos torta de ovos e caldo verde (os pratos preferidos) para fazer esquecer que a mãe estava novamente fechada no quarto, com essa misteriosa doença que nos fazia beneficiárias de demasiadas tortilhas para a nossa idade – yupee! Ríamo-nos muito das nossas piadinhas e do que diziam os outros, os que se cruzavam com o nosso reino: o menino que no infantário do Largo de São Domingos silenciava as nossas queixas contra a sopa com um firme "come e cala" fez-nos rir durante muitas sestas forçadas.

Depois veio a expulsão do Éden e o exílio em Trás-os-Montes, esse lugar primitivo onde os dias, sem mar, eram mais escuros e sombrios, onde os pais estavam mais tensos e menos disponíveis, e faltava ao infantário o mínimo de condições para o desenvolvimento saudável de duas cachopas habituadas a uma dieta cosmopolita de filmes e educadoras modernas. Que me lembre, foi só aí que ela começou a ser vítima dos meus ciúmes (reza a lenda que vinham de antes: os pais falam de uma esmaecida bebé amarela de ciúmes que teve de ser separada da mais nova para recuperar o vigor nas faces, numa cura de emergência em Vilarinho). Ela era demasiado bonita, demasiado patusca e adorável, demasiado ela, e a verdade é que eu sonhava desfazer-lhe o rosto redondo e perfeito à pancada, esmurrar-lhe as asas do nariz e esbofetear-lhe as bochechas coradinhas – "quero ver se depois ainda gostam dela". Ela era o brinquedo amado e odiado, e se por acaso se recusava aos meus caprichos ("Queres brincar aos alunos e professores?" era uma pergunta retórica que só admitia assentimento), sofria na carne a ousadia – humilhação só batida pelos meus apressados pedidos de perdão ("pára de chorar que é para podermos ir brincar!"). Sob a coacção implícita de mais porrada, ela perdoava, que remédio.

Só os misteriosos poderes curativos do tempo e a prodigiosa elasticidade dos laços fraternos explicam que ela hoje ainda me fale e que tenhamos ultrapassado os tempos em que eu era o carrasco dos dias dela e ela o tormento do meu ego. Contra todas as expectativas, a cumplicidade dos primeiros tempos sobreviveu. Anos mais tarde, quem passasse pelo Chop, o café simultaneamente mais "in" e alternativo do burgo e residência fixa do vasto grupo de amigos, encontrar-nos-ia sozinhas numa mesa a tagarelar pelos cotovelos. "Mas vocês não falam em casa?!", queixavam-se eles, a tentar apartar-nos do transe com bebidas enviadas "para aquelas duas lá ao fundo".
Nesses anos, o meu rosto quadrado e anguloso metamorfoseou-se numa cara vagamente gótica, giraça com o barulho das luzes mas nunca à altura dos ditames clássicos da simetria e da beleza, e eu compensava os limitados atributos com uma personalidade histriónica e muitos arremedos de anarca-cheia-de-personalidade. Percebi que havia gajos para este mercado, mas ficou-me sempre o terror da comparação. Antes de lhe apresentar namorados, instruía os ditos na proverbial beleza da minha maninha, os olhos grandes cheios de luz, os dentes brancos a refulgir nos lábios, o traço perfeito das sobrancelhas, a testa povoada de cabelo espesso de fazer inveja à Rita Hayworth (que teve de fazer implantes para conseguir aquele desenho de testa em coração, li eu numa revista em Viana), e sobretudo o nariz que desafiou a maldição da família e se tornou perfeito – não fossem os mancebos soçobrar, fracos nos joelhos, perante a súbita aparição, e perceber que tinham escolhido a irmã errada, Avé irmã cheiinha de graça.
Não era só a beleza que eu lhe invejava: era o facto de ela não parecer "self-conscious" (não conheço tradução adequada em português), ao contrário de mim, que tinha sempre demasiadas mãos e gestos para parecer natural ("Posso leeeer?" sedentos de atenção frente à câmara são brandidos periodicamente para me embaraçar). Era a dignidade de rapariguinha orgulhosa que nunca precisou de palhaçadas para que gostassem dela, o mistério dos seus silêncios mais prenhes de significado que toda a minha prolixidade. Ela era mais sólida, mais densa, sedimentada em duras camadas de uma vida interior que eu só vislumbrava nos interstícios da comunicação, e por isso muito mais ela. E era ela a irmã mais velha de facto, se não de direito, que me acalmava os medos histéricos dos ratos que nos invadiram a casa, ainda o Sá Carneiro não tinha morrido na televisão, dispondo no chão da cozinha a louça lilliputiana para o chá das cinco: "Vamos convidar os ratinhos para tomar chá connosco?".
Trinta e poucos anos chegaram para que a nossa relação tivesse muitas faces e para que eu tenha tido nesta irmã muitas irmãs e tenha sido muitas irmãs para ela. E se ao fim deste tempo a operação que apartou as siamesas se pode dizer um sucesso, a cicatriz atesta a união primitiva e original. Os que chegaram depois que me perdoem, mas sem ela eu nunca saberei quem realmente sou, negativo e positivo de mim própria, nostalgia mítica de ter perdido a minha melhor parte.
Créditos da foto / Copyright: Khamael / Paulo Rodrigues, a Portuguese photographer from Flickr based in the Netherlands who captured a timeless little girl in Viana. She reminds me of my sister and I when we were growing up in that same town. Please forgive me for stealing your picture and do complain should you want me to remove it.

5 comments:

  1. Que bonito. :)
    Anos e anos de maus-tratos e chantagem emocional tão bem maquilhados neste post.
    :p
    Não me ligues, eu tenho é ciumeira. Mas só da boa. :)

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  2. Cala-te que ainda apanhas tb! ;-)

    Pensei que se notasse menos, damn it! Raisparta a omnisciência dos irmãos... E ainda nem chegámos aos actos de contrição pelos "Oh Pauliiiinha!...". Mi aguarde! :-P

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  3. As boas notícias são que este blogUE não vai ser processado por violação dos direitos de autor: consegui contactar o fotógrafo, que é a simpatia em figura de cientista/artista/fotógrafo, e ele não se importa que a foto continue no blogue. Obrigada, Paulo!

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  4. Caramba irmã, quanta emoção junta foi ler este post! Imagino que para ti também tenha sido escrevê-lo, apesar do habituada que estás às letras, mas estas são do fundinho do baú das recordações, que, ainda que amarelecidas, nos parecem sempre mais bonitas à distância.
    Como foi bom sermos irmãs gémeas sem o sermos! Que sensação doce a de ter uma Viana e de a partilhar com quem tinha um (meu)Regato. O giro era que eu era tão pequena que a minha Viana era um simples sofá cheio de bonecas, mas no teu Regato corria uma água fresca, no meio de verdes prados.
    Obrigada por me trazeres à memória esses tempos passados a duas, quando ainda não éramos quatro ;-)

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  5. Foi escrito com a ajuda de um enorme stock de lenços de papel (estou constipada. Muito mesmo. Chefe, estou com uma gripe imensa, se por acaso este blogue te chegar aos ouvidos).

    Não me lembrava que a tua Viana era um sofá cheio de bonecas, LOL! Ah, e a gerência agradece não teres revelado outros episódios proibidos pela Convenção de Genebra. Temos meios de te fazer calar...

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