Sunday 30 November 2008

Speak of the devil

Olha que pergunta...


"If the devil had blue eyes and wore blue jeans, would you let him in?" *

Acompanhamento musical: "Behind blue eyes", The Who, in "Who's next" (hoje foi ele que escolheu, poupando-nos a todos à versão do Limp Bizkit - "You didn't know the original by the Who? Are you serious?!" ).



(também disponível em multimédia, com o bónus adicional do Dr. House - irmãs, não me agradeçam)



* Anónimo. Pode ter vindo daqui. Não se dêem ao trabalho de ir à procura da música (country, t'arrenego): é mais um daqueles casos em que não está à altura da letra)

51. Felizes os felizes

Aviso à navegação: este post foi escrito sob o efeito de endorfinas, mistura alhos com bugalhos e tem (argh!) um final feliz.

São quase duas da manhã e eu procuro uma música que me console de não ter trazido de Portugal o Requiem de Mozart, um "craving" que me assaltou depois de lhe ceder o computador, tão urgente como a vontade de comer chocolate. Ainda ensaio cantar o Kyrie, mas faltam-me pulmões e alter-egos para a empreitada. E o youtube & o deezer ali tão perto...

Na cozinha, petisco Borges e pão com queijo. Quem não tem Mozart caça com o que encontra, e calhou o argentino estar em cima da mesa (os livros nesta casa há muito se revoltaram contra a ditadura das prateleiras). Folheio à sorte quando dou com os Fragmentos de um evangelho apócrifo, bons demais para guardar só para mim. Regresso à sala e proponho traduzir-lhos. "Go on, then", diz ele, sem largar o labirinto de canalizações dos neopets. Talvez por causa dos meus fracos dotes de tradutora (como é que se diz "Não jures, porque cada juramento é uma ênfase" em inglês? - é necessário combater a polissemia e explicar-lhe que Borges se refere ao "swear" de mão na Bíblia, aos "oaths", e não à profanidade, embora não me desagrade a ideia de um mandamento "Não digas asneiras, porque cada asneira é uma ênfase"), talvez por causa da concorrência do laptop, não consigo convertê-lo. Hèlas, o Borges pode ter nascido numa biblioteca inglesa: este inglês ia a outra missa.

Agora apetece-me muito ouvir a morte de Weronika (ou concerto em Mi menor, para os mais picuinhas), do Van den Budenmayer, compositor apócrifo ao gosto Borgiano por detrás de quem se esconde o Preisner, em jeito de sucedâneo do Requiem - a dois cliques de distância no Youtube, assim eu consiga vencer o obstáculo firmemente sentado frente ao ecrã. A bulimia musical é assim: contrariada, passa do amargo ao agridoce, mas não desiste. Ainda tento cantar sozinha, mas nunca decorei a letra depois do "O voi che siete in piccioletta barca", e faltam-me todas as estrofes que medeiam entre este verso e os "Aaaah, aaaaah, ah - ahhhhhh!" que se seguem.

"Please, please, please, I'll just listen to one song, I promise!" "You know you never keep your promises." "Oh please..." "Let me finish this game and you can have it". Os tubinhos arranjam-se numa sucessão muito conveniente para mim, o jogo acaba, e agora sim, sento-me aos comandos da internet. Olha, não me lembrava que a soprano cantava "pichioleta" - ela não sabe que dois "cc" em italiano se lêem "quê", as in "Ecce homo"? Duh! Mas é lindo. Entusiasmo-me o suficiente to sing along, em tom demasiado alto para o adiantado da hora e para que ele me ouça do quarto. "Aaaaaaaaaaaaaaaaaaah - Aaaah - Aaaaaah - Aaaaaaaaaaaaahhhhhh!"

"You sound a lot better. You sing better than all this people, Cristina 'Braunco' and all". "Don't be silly". "But you do! I prefer you!" "You don't know what you're talking about", respondo-lhe sem falsas modéstias (pronto, só um bocadinho). Explico-lhe que canto em falsete e que me limito a macaquear as outras vozes, "vês? Não chego às partes mais altas e nas outras desafino". "I still prefer you".

Não sei se ouviram bem. Este homem prefere-me à Irene Jacob dobrada pela Elzbieta Towarnicka (tentem lá pronunciar este nome - don't you love google?). Razão tem o Evangelho segundo São Borges, que desta vez não resiste à tradução: Happy are the happy, number 51. "I like that one".

A hundred percent of people interviewed agree, mas garanto-vos que ela canta melhor.

Saturday 29 November 2008

Speak of the devil

Por falar em Paraíso(s) perdido(s)...

"The reason Milton wrote in fetters when he wrote of Angels and God, and at liberty when of Devils and Hell, is because he was a true poet and of the Devil’s party without knowing it."

"A razão pela qual Milton escreveu agrilhoado quando escreveu sobre Anjos e Deus, e em plena liberdade quando escreveu sobre Demónios e o Inferno, é porque ele era um verdadeiro poeta e companheiro do Diabo, sem o saber."*

William Blake, The Marriage of Heaven and Hell (a "voz do diabo" fala sobre o "Paradise Lost", de Milton)

Ilustração: William Blake, "Satan Watching the Caresses of Adam and Eve", 1808 (Ilustração de "Paradise Lost", de Milton, Museum of Fine Arts, Boston)

* Tradução de Helena Vasconcelos

Banda sonora opcional

Foi você que perguntou

...o que quer dizer Diabo a Quatro?

1."Fazer grande ruído ou estardalhaço, ser causa ou autor de incidentes de todo o género. Vem de longe a origem. Representavam-se na Idade Média peças de devoção que ficaram conhecidas como 'mistérios'. Em certas delas, o diabo era personagem imprescindível. A essas peças chamaram 'diabruras'. Havia as 'pequenas diabruras', onde não entravam mais de três diabos, e as 'grandes diabruras', em que no mínimo tinham de entrar quatro diabos." ("Dicionário das Origens das Frases Feitas", de Orlando Neves, in Ciberdúvidas)

2. "Fazer grande alarido, diabruras, desordens" (o mesmo que "pintar a manta", "pintar o sete")

E mais: as "diabruras" citadas são rituais pagãos que sobrevivem, adivinhem onde? Dá-se-lhe uma, dá-se-lhe duas, dão-se-lhe três: arrematado aos senhores ali ao fundo ---> "No planalto mirandês (...) ainda é possível apreciar as 'diabruras' destas personagens que representam memórias em algumas das aldeias dos concelhos de Miranda do Douro e Mogadouro".

Eu avisei que todos os caminhos vão dar a Trás-os-Montes.

Geografia relativa


Para ele e para ela é um refúgio espiritual, o mítico paraíso perdido (também conhecido entre os iniciados como "reino maravilhoso"). Para mim, que tenho Viana como "paradise lost" desde que aos cinco anos me arrancaram de lá sem me consultarem, é sinónimo de desterro e exílio forçado. Mas todos os caminhos vão dar a Trás-os-Montes. Boa viagem!

Pequeno dicionário de transmontanês

Discursão - troca de ideias animada com falácias "ad hominem", injúrias ou insultos.

Nunca la cargaremos - nunca acertaremos, nunca remaremos no mesmo sentido, nunca atingiremos o objectivo para o qual estávamos destinados (usado amiúde quando um dos membros está atrasado ou decidiu num sentido divergente do auto-designado iluminado da família). V.g. "- Onde está X, para começarmos a carregar o carro? - X foi ao Pinheiro Manso comprar cera depilatória & cortar o cabelo. [em tom escarninho] - Ai a menina X foi ao Pinheiro Manso comprar cera depilatória & cortar o cabelo?... Nunca la cargaremos!".

Chetecentos - O mesmo que setecentos. Problema de articulação que afecta em particular transmontanos nascidos a sul de Vila dos Sinos. Barbarismo resistente a todos os esforços educacionais e terapeutas da fala. Os antropólogos não registam qualquer ocorrência em Vila de Ala.

Friday 28 November 2008

Speak of the devil


As soon as I'm left alone
The devil wanders into my soul

And I pretend to myself

I go out
To the old milestone
Insanely expecting
You to come there
Knowing that I wait for you there

(PJ Harvey, The Devil, White Chalk)


Haiku Automóvel

Forte a chuva que cai
Brilham as pingas no vidro
Luzes de Natal molhadas

A bem da classe

Caro anónimo indignado com a indignação dos professores, os homens (e as mulheres) não se medem aos palmos, medem-se, entre outras coisas, por aquilo que afirmam, isto é, por saberem ou não saberem o que dizem e do que falam.

O caro anónimo mostra-se indignado (apesar de não aceitar que os professores também se possam indignar! Dualidade de critérios deste nosso estimado anónimo... Mas passemos à frente) com o excesso de descanso dos professores: afirma que descansamos no Natal, no Carnaval, na Páscoa e no Verão (esqueceu-se de mencionar que também descansamos aos fins-de-semana). E o nosso prezado anónimo insurge-se veementemente contra tão desmesurada dose de descanso de que os professores usufruem e de que, ao que parece, ninguém mais usufrui.

Ora vamos lá ver se o nosso atento e sagaz anónimo tem razão. Vai perdoar-me, mas, nestas coisas, só lá vamos com contas.

O horário semanal de trabalho do professor é de 35 horas. Dessas trinta e cinco, 11 horas (em alguns casos até são apenas dez) são destinadas ao seu trabalho individual, que cada um gere como entende. As outras 24 horas são passadas na escola, a leccionar, a dar apoio, em reuniões,
em aulas de substituição, em funções de direcção de turma, de coordenação pedagógica, etc., etc.

Bom, centremo-nos naquelas 11 horas que estão destinadas ao trabalho que é realizado pelo professor fora da escola (já que na escola não há quaisquer condições de o realizar): preparação de aulas, elaboração de testes, correcção de testes, correcção de trabalhos de casa, correcção de trabalhos individuais e/ou de grupo, investigação e formação contínua. Agora, vamos imaginar que um professor, a quem podemos passar a chamar de Simplício, tem 5 turmas, 3 níveis de ensino, e que cada turma tem 25 alunos (há casos de professores com mais turmas,mais alunos e mais níveis de ensino e há casos com menos - ficamos por uma situação média, se não se importar). Para sabermos o quanto este professor trabalha ou descansa, temos de contar as suas horas de trabalho.

Vamos lá, então, contar:

1. Preparação de aulas: considerando que tem duas vezes por semana cada uma dessas turmas e que tem três níveis diferentes de ensino, o professor Simplício precisa de preparar, no mínimo, 6 aulas por semana (estou a considerar, hipoteticamente, que as turmas do mesmo nível são
exactamente iguais - o que não acontece - e que, por isso, quando prepara para uma turma também já está a preparar para a outra turma do mesmo nível). Vamos considerar que a preparação de cada aula demora 1 hora. Significa que, por semana, despende 6 horas para esse trabalho.
Se o período tiver 14 semanas, como é o caso do 1.º período do presente ano lectivo, o professor gasta um total de 84 horas nesta tarefa.

2. Elaboração de testes: imaginemos que o prof. Simplício realiza, por período, dois testes em cada turma. Significa que tem de elaborar dez testes. Vamos imaginar que ele consegue gastar apenas 1 hora para preparar, escrever e fotocopiar o teste (estou a ser muito poupado, acredite), quer dizer que consome, num período, 10 horas neste trabalho.

3. Correcção de testes: o prof. Simplício tem, como vimos, 125 alunos, isto implica que ele corrige, por período, 250 testes. Vamos imaginar que ele consegue corrigir cada teste em 25 minutos (o que, em muitas disciplinas, seria um milagre, mas vamos admitir que sim, que é possível corrigir em tão pouco tempo), demora mais de 104 horas para conseguir corrigir todos os testes, durante um período.

4. Correcção de trabalhos de casa: consideremos que o prof. Simplício só manda realizar trabalhos para casa uma vez por semana e que corrige cada um em 10 minutos. No total são mais de 20 horas (isto é, 125 alunos x 10 minutos) por semana. Como o período tem 14 semanas, temos um resultado final de mais de 280 horas.

5. Correcção de trabalhos individuais e/ou de grupo: vamos pensar que o prof. Simplício manda realizar apenas um trabalho de grupo, por período, e que cada grupo é composto por 3 alunos; terá de corrigir cerca de 41 trabalhos. Vamos também imaginar que demora apenas 1 hora a corrigir cada um deles (os meus colegas até gargalham, ao verem estes números tão minguados), dá um total de 41 horas.

6. Investigação: consideremos que o professor dedica apenas 2 horas por semana a investigar, dá, no período, 28 horas (2h x 14 semanas).

7. Acções de formação contínua: para não atrapalhar as contas, nem vou considerar este tempo.

Vamos, então, somar isto tudo:

84h+10h+104h+280h+41h+28h=547 horas.

Multipliquemos, agora, as 11 horas semanais que o professor tem para estes trabalhos pelas 14 semanas do período: 11hx14= 154 horas.

Ora 547h-154h=393 horas. Significa isto que o professor trabalhou, no período, 393 horas a mais do que aquelas que lhe tinham sido destinadas para o efeito.

Vamos ver, de seguida, quantos dias úteis de descanso tem o professor no Natal.

No próximo Natal, por exemplo, as aulas terminam no dia 18 de Dezembro. Os dias 19, 22 e 23 serão para realizar Conselhos de Turma, portanto, terá descanso nos seguintes dias úteis: 24, 26, 29 30 e 31 de Dezembro e dia 2 de Janeiro. Total de 6 dias úteis. Ora 6 dias vezes 7 horas de trabalho por dia dá 42 horas. Então, vamos subtrair às 393 horas a mais que o professor trabalhou as 42 horas de descanso que teve no Natal, ficam a sobrar 351 horas. Quer dizer, o professor trabalhou a mais 351horas! Isto em dias de trabalho, de 7 horas diárias, corresponde a 50 dias!!! O professor Simplício tem um crédito sobre o Estado de 50 dias de trabalho. Por outras palavras, o Estado tem um calote de 50 dias para com o prof. Simplício.

Pois é, não parecia, pois não, caro anónimo? Mas é isso que o Estado deve, em média, a cada professor no final de cada período escolar.

Ora, como o Estado somos todos nós, onde se inclui, naturalmente, o nosso prezado anónimo, (pressupondo que, como nós, tem os impostos em dia) significa que o estimado anónimo, afinal, está em dívida para com o prof. Simplício. E ao contrário daquilo que o nosso simpático anónimo afirmava, os professores não descansam muito, descansam pouco!

Veja lá os trabalhos que arranjou: sai daqui a dever dinheiro a um professor. Mas, não se incomode, pode ser que um dia se encontrem e, nessa altura, o amigo paga o que deve.


*Genial ironia do colega que se deu ao trabalho de fazer as contas e responder!

Não, não, não sou a única

eu não sou a única, não sou a única a escrever no blogue. Contra todas as aparências e o que alegam algumas alcoviteiras que parecem querer separar o que o blogger juntou, este tasco é de nós quatro e vai ser escrito a oito mãos, ao ritmo de cada um e sem forçar ninguém. E tenho boas notícias: o H. prometeu postar aqui uma foto do quarto arrumadinho dele (essa lenda urbana) para a posteridade, e a 3,14, agora que despachou o trabalho da pós-graduação, há-de arranjar tempo para nos brindar com um postzito ou outro. E eu sei que a Administração tem vários condomínios a que dar atenção, mas entre posts em stereo e densos haikus, contamos com ela!
Sim, que isto tem que dar uma volta como um fuso! Isto tem de entrar nos eixos! E eu quero postas!

Filosofia de bolso

"Lendo Plutarco"


Vangloriava-se de estar
a salvo de um mal:
perder
um filho.

Tornara-se imune a essa dor
de modo simples:
não tendo
filhos.

Sábio homem, esse,
cujo medo de perder
um filho
o fez perder
todos os filhos.

Sábio homem, esse
grego,
esse grande,
esse pobre
Tales de Mileto.

(Ruy Espinheira Filho, poeta brasileiro)

Este poema é baseado na história de Sólon, contada por Plutarco aqui (ao fundo da página) e aqui. Parece que Tales tinha um amigo chamado Sólon que lhe perguntou por que razão não tinha tido filhos. Em jeito de resposta, Tales arquitectou a seguinte manha: enviou um mensageiro a casa de Sólon a dizer que o filho daquele tinha morrido, ao que o pobre Sólon desatou a gritar e a arrancar cabelos. O Tales chega lá, todo ufano, e diz-lhe, à maneira de budista zen: "Não te preocupes, o teu filho não morreu. Mas visto o estado em que uma tal notícia deixa um homem tão razoável como tu, já vês por que razão não quero ter filhos" (ou words to that effect).

A falácia é desmontada por Plutarco, que comenta que é "irracional e pobre de espírito não ousar adquirir o que desejamos por medo de o perder, já que pela mesma lógica não deveríamos cobiçar riqueza, glória ou sabedoria, por temermos perdê-los; mesmo a saúde, a mais desejável das posses, se perde por doença" (tradução livre). Que é como quem diz que há outra forma de dor, mais vazia e árida que a de perder o que amamos, e que envena muitas vidas & velhices: a de nunca ter tentado. Poets say it better: "Talvez por não ousar / Ninguém mereça o que viveu / Talvez não amanheça" (versinhos de Vasco Graça Moura, in "Soneto Destruído", que me perseguem como um aviso).

A conspiração dos isqueiros obsoletos

Correndo o risco de parecer a avozinha do blogue, ainda me lembro do tempo em que os isqueiros, desses descartáveis que me oferecem sempre que compro um volume de Gauloises Blondes, duravam tempo suficiente para que eu os perdesse ou se lhes gastasse o gás. Recentemente, e em paralelo com a legislação europeia que impôs isqueiros seguros para as crianças, deixei de ter tempo de os perder. A "obsolescência planeada" ("planned obsolescence" ou "built-in obsolescence") atingiu níveis absurdos. Agora, os isqueiros tornam-se obsoletos em menos tempo do que demora a acabar um volume de cigarros – no meu caso, em menos de um ai. A roda dentada encrava, a patilha parte-se ou o dito deixa simplesmente de dar lume apesar de abanado com jeito e de lhe sobrar muito combustível. Resultado: eu que passo a manhã à procura dos óculos, que tenho um currículo irrepreensível a perder canetas, isqueiros e uma parafernália de pequenos objectos e que só não perco a cabeça porque está atarrachada ao pescoço, conto neste momento seis, SEIS isqueiros espalhados pela casa. Nenhum funciona, que é isso que quer dizer obsolescência (Wikipedia é cultura).

A melhor definição de obsolescência planeada é "designed for the dump" (planeado para o lixo), e está no documentário "The Story of Stuff" que o meu irmão me mostrou há já alguns meses mas que ainda não se tornou obsoleto. Vão lá vê-lo, que não dão o tempo por perdido. Eu entretanto vou mudar para isqueiros recarregáveis, a ver se consigo voltar a dar-lhes sumiço antes que eles se recusem a dar-me lume sem outra razão que a ganância dos fabricantes de isqueiros. Lighters of the world, ignite!

Thursday 27 November 2008

Speak of the devil

xxiv. o diabo, um dos maiores dos monstros, se existisse numa qualquer encruzilhada, tocaria guitarra e teria outro nome.

(apontamentos para monstroário, por constantino corbain, in "Os monstros são nossos amigos" - blogue já falecido, rest in peace)




(a selecção musical é da inteira responsabilidade deste blogue. O constantino corbain que me desculpe, que ele tinha previsto outra coisa)

O frio explicado aos não-geógrafos

H.: bom dia!
moi: buenas
H.: que tal?
moi: cansada e constipada
H: OHHHH
tadinha
sabes que está a vir ar polar directamente para cima das nossas cabeças
moi: sim, eu sei
não gosto
H.: sem passar pela casa de partida e sem receber calor de lado nenhum
moi: lol
H.: na carta de pressão é que dá para ver
shit é cá uma auto-estrada do frio

in Conversas no GCHATo (publicado com a devida autorização)

Cada qual tem o mantra que merece

I've always embraced failure as a noble pursuit. It allows you to be anti whatever anyone wants you to be, and to break all the rules. It was one of my tutors at Saint Martins, when I was an art student, that really brought it home to me. He said that only by being willing to fail can you become fearless. He compared the role of an artist to that of being an alchemist or magician. And he thought the real magic was found in flamboyant, provocative failure rather than benign success. So that's what I've been striving for ever since.

Malcolm McLaren, visionário manager dos Sex Pistols (e coleccionador de extravagantes fracassos desde então), em entrevista ao Observer.

Wednesday 26 November 2008

Speak of the devil


"Poema de sete faces"

Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.

As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.

O bonde passa cheio de pernas:
pernas brancas pretas amarelas.
Para que tanta perna, meu Deus, pergunta meu coração.
Porém meus olhos
não perguntam nada.

O homem atrás do bigode
é sério, simples e forte.
Quase não conversa.
Tem poucos, raros amigos
o homem atrás dos óculos e do bigode.

Meu Deus, por que me abandonaste
se sabias que eu não era Deus
se sabias que eu era fraco.

Mundo mundo vasto mundo,
se eu me chamasse Raimundo
seria uma rima, não seria uma solução.
Mundo mundo vasto mundo,
mais vasto é meu coração.

Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

(Carlos Drummond de Andrade)

"Com Licença Poética"

Quando nasci um anjo esbelto,
desses que tocam trombeta, anunciou:
vai carregar bandeira.
Cargo muito pesado para mulher,
essa espécie ainda envergonhada.
Aceito os subterfúgios que me cabem,
sem precisar mentir.
Não sou tão feia que não possa casar,
acho o Rio de Janeiro uma beleza e
ora sim, ora não, creio em parto sem dor.
Mas o que sinto escrevo. Cumpro a sina.
Inauguro linhagens, fundo reinos
- dor não é amargura.
Minha tristeza não tem pedigree,
já a minha vontade de alegria,
sua raiz vai ao meu mil avô.
Vai ser coxo na vida é maldição para homem.
Mulher é desdobrável. Eu sou.

(Adélia Prado, poetisa brasileira - descoberta em "18 + 1 poètes contemporains de langue portugaise", ed. biligue, redescoberta via Meditação na Pastelaria)

Os primos brasileiros


Andava eu à coca de fotos para a rubrica "Speak of the devil" quando me deparo com esta pérola: o logo dos Diabo-a-Quatro, uma banda brasileira que canta em inglês.
Se não fossem os direitos de autor, era menina para o pespegar à porta de entrada do blogue, em jeito de sucedâneo dos azulejos portugueses no estilo "Quem nesta casa entrar / É favor os pés limpar".
Assim sendo, e como os "primos" são capazes de não gostar da brincadeira, teremos de aguardar que o Alex nos faça a caricatura "à la minute" encomendada (não se preocupem que eu pedi para ele nos desenhar altos, giros e magros). Ele respondeu-me anteontem. "Quanto à do H. não há problema, as das irmãs é que pode ser mais difícil (ou faço-as todas com cara de H.)".
Talvez não fosse pior ir pensando em contactar os primos brasileiros...

Para a caçula


Porque algumas coisas, incluindo bolo de laranja e palmadinhas nas costas, não cabem no envelope standard.


Tuesday 25 November 2008

Foi um ar que lhes deu

Os rumores acerca da morte do deezer podem ser exagerados, mas ele não anda com boa cara. Acabam de me desaparecer várias "playlistas", incluindo da Björk, Radiohead, My Brightest Diamond e Lhasa de Sela. Estou de luto.

"Manuel" de instruções

Há gralhas que parecem lapsos freudianos.

(retirado de email para a Administração)

Speak of the devil

"The devil is an optimist if he thinks he can make people worse than they are." (Karl Kraus)

Em adenda

Ficam de fora do referendo as seguintes, todas merecedoras pelo menos de menções honrosas: "Everybody Knows", Leonard Cohen (especialmente para quem foi traído); "She Chameleon", dos Marillion (especialmente para rapazes vitimizados por "one-night stands"); "Pois é", cantada pela Elis Regina (parece-me que do Chico Buarque, que regista assim segunda entrada no top); "Unravel", da Bjork (do Homogenic, um verdadeiro "break up" álbum - diz quem experimentou que dá grandes epifanias, especialmente quando acompanhado de vinho tinto); "The Good and the Bad Guy", My Brightest Diamond; o (talvez demasiado óbvio) "Creep", dos Radiohead; sem esquecer o excelente "Friend is a four-letter word", dos Cake (segunda entrada).

Do produto nacional, "Ouvi Dizer", dos grandes Ornatos Violeta, é um must (to be played at maximum volume), e já que estão por aí ouçam também o "Chaga", que não se arrependem (entretanto upgraded para o referendo - faltava o candidato n. 3, como insistentemente me avisaram os leitores deste blogue, por email, SMS e pombos correio. Ok, ok, ninguém reparou, mas eu sou assim a modos que perfeccionista).

Finalmente, há quem me garanta que "This mess we're in", da PJ Harvey e Thom Yorke, é uma boa break up song, but it does nothing for me: como música é excelente, mas acho que funciona melhor como banda sonora de amores impossíveis, tipo girl-meets-married-boy or boy-meets-married-girl ou married-boy-meets-married-girl-with-kids-and-fatal-disease-and-must-fly-New-York-in-a-rush... you get the drift.

Adenda à adenda: ainda me esquecia do "Cry me a River", cantado pela Julie London (mais um para a categoria "hás-de cá vir pedir batatinhas" - nunca são demais).

Cry me a river

Lá no outro tasco, a Ju decidiu eleger, de forma unilateral e sem consultar a blogosfera, a melhor canção de separação. Ganhou o "Trocando em Miúdos", do Chico Buarque, resultado que já foi questionado por observadores internacionais. Além do "Five Years", do Bowie, nem se sabe quem eram os outros candidatos, ou não fosse aquilo uma República da(s) Joana(s). Não houve campanha nem tempo de antena para ouvir as propostas dos candidatos e as máquinas de voto estavam claramente endrominadas para votar Chico "McCain" Buarque. Delegados da ONU para fiscalizar a eleição? Zero - I kid you not.

Aqui no Diabo queremos acabar com esta maneira de fazer política que em nada dignifica a música de chorar baba & ranho. Depois do aborto e do casamento dos homossexuais, chegou a hora de enfrentarmos juntos a questão realmente fracturante: qual é a melhor "break up song" de sempre?

Vocês decidem!*

*Os participantes na primeira grande sondagem do Diabo a Quatro levam para casa uma assinatura gratuita no deezer e um stock gigante de lenços de papel.


Ela,

a que escreve coisas que me põem a chorar (ela avisou), coitadinha, parece uma criança com um brinquedo novo.
Anda tão entusiasmada com o blog, é tão gira.
Em compensação, os outros dois morcões nem piam.
Assim não binco, pás!

Monday 24 November 2008

Speak of the devil

"Laughter kills fear, and without fear there can be no faith, because without fear of the Devil there is no more need of God".

Jorge de Burgos, no diálogo com William de Baskerville ("O Nome da Rosa")

(via jugular)

Speak of the devil

Muito sabe o diabo, não por ser o diabo, mas por ser velho.




(anónimo)

Sunday 23 November 2008

Cai neve, cai neve, cai neve no jardim

They're not dead




they feel fine and have come back to haunt us.

For 3 years you YouTubers have been ripping us off, taking tens of thousands of our videos and putting them on YouTube. Now the tables are turned. It's time for us to take matters into our own hands.

We know who you are, we know where you live and we could come after you in ways too horrible to tell. But being the extraordinarily nice chaps we are, we've figured a better way to get our own back: We've launched our own Monty Python channel on YouTube.


O canal dos Monty Python está à distância de um clique. Com música ambiente (opcional), para provar à Administração que somos capazes de posts multimédia sem a ajuda dela.




(via Arrastão)

Juanita Wilder: toda a biografia autorizada

Chamam-me Juanita Wilder por causa do filme em que a Kathleen Turner faz de Joan Wilder, uma romancista, apelidada de "Juanita Wilder" pelo seu maior fã mexicano.
Ficou.
Na idade em que não queria comer nunca-jamais-nesta-vida-ou-na-outra, era tudo menos roliça.
Era magrinha e pequenina, tanto que a Tia Aninhas dizia "Esta vai ser anã". Todo um poço de carinho, aquela nossa tia.
A comadre transmontana disse à Mãe, and I quote, "Ui, e esta? De onde veio esta? Vai ter de a guardar na arca, senão não casa as outras!".
E finalmente, a maior querela da história das querelas dos irmãos:
eu não me abarbatei a quarto nenhum, deram-me foi o quarto mais ranhoso, exilado na outra ponta da casa, entre a cozinha e a sala, qual empregada, porque caí sempre do prato e porque os grandiosos planos dos progenitores de nos porem às três no mesmo quarto saíram furados quando viram que o quarto mal dava para vocês as duas.
Lá que depois fosse o quarto mais agradável da casa, refúgio para fumadoras de armário e escape de festas chatas, já não é culpa minha.

Voltem, que estão aperdoados


O Vaticano aproveitou ontem o 40º aniversário do melhor álbum dos Fab Four para se pôr em biquinhos de pés e perdoar-lhes por serem mais famosos que Jesus. Or words to that effect. Atrasados, aqui ficam os parabéns de nós os quatro.

Via jugular


Juanita Wilder


Não sei quem lhe pôs o cognome com sabor a rebeldia e faroeste, mas o certo é que pegou. É uma outsider, uma maverick. O único varão da família azucrinou-lhe a infância e a adolescência garantindo a quem queria ouvir (e sobretudo a quem não queria) que ela foi encontrada "nas látchinhas", maldade com a presciência de que ela, a mais novinha, é a mais independente e original de todos nós. Não se deixem enganar pelas fotografias de bebé: sim, é igual à outra, mas lá dentro mora uma pessoa completamente diferente da quadrilha.

À terceira gravidez os pais deitaram-se a dormir sobre os louros de terem finalmente acertado no rapaz, e tungas, lá veio ela, extemporânea como as flores mais bonitas e os frutos mais doces. Sim, que aqui a vontade dos progenitores não conta para nada: quem conhecer a Joana sabe que ela é capaz de qualquer coisa que se lhe meta na cabeça, e se queria nascer não eram uns meros cálculos economicistas que a iam impedir. Humpfff!

Era tão bonita que precipitou um aviso de uma comadre transmontana disfarçado de elogio: "Se quiserem casar as outras, têm de esconder esta na arca!" (1). Não lhe chegava: tinha de ser diferente. Bem podia o José Barata Moura cantar "come a papa, Joana come a papa": recusava quase tudo. Era um tormento convencê-la a comer: tirando melancia, uns fiozinhos de esparguete nos dias bons e o ocasional copo de leite, recusava de boquita fechada qualquer alimento transportado em colheres aladas. "Um, dois, três, uma colher de cada vez. Quatro, cinco, seis, era uma história de reis, e uma colher de papa". O avião falhava o alvo, dava mais umas voltinhas, na esperança de que a aerogare abrisse eventualmente as portas, para desistir, com falta de combustível e os nervos do piloto arruinados. Então sorria, muito satisfeita. Sem maldade, como quem se limita a cumprir a parte que lhe toca na brincadeira.

Mas era roliça e saudável, testemunho da infinita resiliência das criancas, e hoje tem um apetite que paga com juros especulativos as dívidas da infância, como já avisava na altura a mãe.

Era avessa a quaisquer espartilhos ou regras sociais. Deixava-se vestir para minutos mais tarde a irmos encontrar, completamente nua, no jardim. Tinha sempre calor. À noite, na terceira cama do dormitório das raparigas, cantava para ela mesma, baixinho, até adormecer. Eu e a outra tentávamos calá-la, primeiro às boas ("Joaninha, temos de dormir"), depois com ameaças progressivamente mais duras. Era surda a todos os argumentos: calava-se uns minutos e depois recomeçava, lá-lá-lá-lá-lá. Acabávamos a rir-nos à socapa daquela coisinha que cantava tão bem, teimosa e auto-suficiente. Ou torcida, como vaticinava a mãe. O pai, esse, disfarçava como podia que esta era a menina dele – compensando ausências? Ela usou e abusou do poder.

Nós contrariávamos-lhe as tentações imperialistas garantindo-lhe que "isto não é de Joana". Mas era.

Mal pôde, livrou-se de nós: quando houve uma vaga para um quarto, no primeiro apartamento do Porto, ocupou-o com os seus livros, peluches e diário muitas vezes devassado (mas essa história ela conta-a melhor que ninguém), saltando por cima de hierarquias e direitos de primogenitura. Fez alianças com a sósia, mãe postiça que lhe dava banho em pequenina e nunca sofreu a tentação de a fazer vergar, como outras ditadoras. A casa dividia-se entre "elas" e nós, e ainda hoje, depois de ter feito amplas pazes comigo, cultiva clivagens com o "menino".

Com estes ingredientes fresquinhos, não houve cozinheiro que estragasse o caldo (e olhem que muitos tentaram). É o despacho em figura de gente: resolve qualquer problema enquanto o diabo esfrega um olho e ganhou por isso mais um cognome, o Helpdesk da família (sim, quem é que acham que criou este tasco em menos tempo do que o mafarrico leva a dizer "fiat blog"?). Durante anos era ela que as pessoas ouviam quando ligavam para o atendedor de chamadas lá de casa. De todos, é a que me dá menos preocupações: if there's a will, there's a way, e ela sabe o caminho com uma sabedoria instintiva. Foi a primeira a ousar mudar de rumo na Faculdade, e quando tentou encontrar emprego para ocupar as horas mortas arranjou logo três. Pode demorar, mas ela chega sempre lá. É uma figura, garantem as primas brasileiras. Conquista-me todos os namorados e tem em cada casa por onde passo uma suite baptizada "Juaninha’s bedroom". Detém o recorde absoluto de vindas ao Luxemburgo no livro de visitas.

Chora muito, queixa-se mais, dá cabo da paciência a um santo e faz-nos rir em directo e em diferido, principalmente a mim. Eu que não mexi um dedo para ajudar a criá-la, desobrigada pela precoce vocação maternal da П, sou agora a maior beneficiária dos talentos dela – nhan, nhan, nhan, nhan, nhan! :-P

Há quem diga que nasceu para nos salvar. Eu acredito.

(1) Disclaimer: Este elogio é tributário de ideias patriarcais segundo as quais o valor de uma mulher se mede pelo número de pretendentes, e não reflecte de modo algum as convicções deste blogue. Para que conste, este blogue não apoia o casamento, que considera um péssimo negócio para as mulheres (e se calhar para os homens também).

Das preocupações com problemas que não existem

Entro em casa às 10h30 da manhã de domingo.
A Mãe, à espera que o chá fique no ponto certo, assusta-se com o barulho da porta.
Passado o susto inicial, preocupa-se muito com a minha chegada - pensava que eu estava no quarto a dormir, e agita-se: "ai, meu deus, ai, meu deus".
Poderá não ser uma hora muito recomendável e não dar saúde nenhuma, mas não estou já dentro de casa, sã e salva?
Depois a herege sou eu por invocar o nome do senhor em vão.

Multi-facetado

Dos números

É muito bonito, isso tudo que tu dizes,
mas eu sempre ouvi dizer que um banco de três pernas equidistantes é mais resistente do que um de quatro.
E até sei quem é o elo mais fraco, adeus.

S(t)eriado

Saturday 22 November 2008

I solemnly swear

Não usarei o grande lápis azul que me calhou em sorte com a abertura deste blog partilhado.
Como dizia a Dani à Raquel,
vocês agora são maiores de 18 anos, juízo.

E tudo não era demais

Mais quatro bons rapazes


Tomorrow Never Knows

The Fab Four, very appropriate



In stereo

Pronto...


agora já se pode fumar no blogue!

Friday 21 November 2008

Ao princípio era ela


e não me lembro de o mundo existir antes de ela chegar, tinha eu 11 meses e 23 dias. Nascemos na mesma cidade e no mesmo mês, o mais bonito do calendário, o mês da revolução que chegou 15 dias depois da minha primeira irmã. Todos os anos, durante oito dias, temos a mesma idade, suspensão dos meus direitos de primogénita que sempre nos fascinou.
Ao princípio era só ela, e não distinguíamos onde começava uma e acabava a outra. Suspeitei que fôssemos duas entidades distintas depois da experiência pioneira conduzida na Praça da República, em Viana, com toda a cientificidade possível a duas miúdas de 3 e 4 anos. "Consegues ouvir quando eu tapo os ouvidos?". Conseguia. Repetimos a experiência, com uma preocupação precoce de validação de resultados ("Agora tapo eu os ouvidos"), e confirmou-se que o mundo, afinal, continuava a existir sem nós, que ela continuava a existir sem mim e eu sem ela – descoberta que me causou uma náusea próxima do terror.
Dividíamos tudo: as mãos da mãe quando nos levava ao infantário (ela queria sempre a mão rica, a dos anéis, eu resignava-me à mão despojada, consolando-me com a ideia de que aquela pobre mão me agradecia o sacrifício), partilhávamos os brinquedos e os lápis, o quarto secreto que só existia na nossa imaginação e se abria à noite, desafiando o cepticismo dos pais e os limites da Física para revelar prodigiosas quantidades de peluches e bonecas.
Ao princípio era só ela e ela bastava. Os pais eram nessa altura estranhas criaturas invisíveis da cintura para cima que sofriam do persistente transtorno delirante de que tomavam conta de nós, coitados. Nós fingíamos que sim, que precisávamos deles, mas a verdade é que nos bastávamos uma à outra. A prová-lo, a mãe deixava-nos descer sozinhas a Rua da Bandeira, e nós, entretidas a evitar o risco das pedras da calçada, saltando num passo que nós inventámos ("Não vale pisar o risco!"), não reparávamos que a progenitora ficava ali, vigilante, a ver-nos entrar para o infantário.
Vivíamos num mundo só nosso onde éramos ambas crescidas e autónomas e nos visitavámos uma à outra: ela tinha a "minha Viana", lugar mítico em que só por coincidência as fronteiras coincidiam com a terra natal, num desdobramento geográfico muito borgiano, eu tinha o "meu Regato", palavra deliciosa que evocava espaços a perder de vista ao som crepitante da água. Era lá que vivíamos a maior parte do tempo, com o cuidado de regressar quando havia adultos por perto, essas criaturas pernilongas ignorantes dos encantos do mundo e por isso irremediavelmente tontas.
O mundo tinha sido feito a pensar em nós: as bicicletas vinham com rodinhas, a mesa de fórmica na varanda que dava para o arvoredo tinha a nossa altura, e os dois bancos pré Toys-R-Us que faziam conjunto tinham sido serrados à nossa medida: o mais pequenino para ela, o maior para mim. O pai sentava-se na bicicleta e dava-nos torta de ovos e caldo verde (os pratos preferidos) para fazer esquecer que a mãe estava novamente fechada no quarto, com essa misteriosa doença que nos fazia beneficiárias de demasiadas tortilhas para a nossa idade – yupee! Ríamo-nos muito das nossas piadinhas e do que diziam os outros, os que se cruzavam com o nosso reino: o menino que no infantário do Largo de São Domingos silenciava as nossas queixas contra a sopa com um firme "come e cala" fez-nos rir durante muitas sestas forçadas.

Depois veio a expulsão do Éden e o exílio em Trás-os-Montes, esse lugar primitivo onde os dias, sem mar, eram mais escuros e sombrios, onde os pais estavam mais tensos e menos disponíveis, e faltava ao infantário o mínimo de condições para o desenvolvimento saudável de duas cachopas habituadas a uma dieta cosmopolita de filmes e educadoras modernas. Que me lembre, foi só aí que ela começou a ser vítima dos meus ciúmes (reza a lenda que vinham de antes: os pais falam de uma esmaecida bebé amarela de ciúmes que teve de ser separada da mais nova para recuperar o vigor nas faces, numa cura de emergência em Vilarinho). Ela era demasiado bonita, demasiado patusca e adorável, demasiado ela, e a verdade é que eu sonhava desfazer-lhe o rosto redondo e perfeito à pancada, esmurrar-lhe as asas do nariz e esbofetear-lhe as bochechas coradinhas – "quero ver se depois ainda gostam dela". Ela era o brinquedo amado e odiado, e se por acaso se recusava aos meus caprichos ("Queres brincar aos alunos e professores?" era uma pergunta retórica que só admitia assentimento), sofria na carne a ousadia – humilhação só batida pelos meus apressados pedidos de perdão ("pára de chorar que é para podermos ir brincar!"). Sob a coacção implícita de mais porrada, ela perdoava, que remédio.

Só os misteriosos poderes curativos do tempo e a prodigiosa elasticidade dos laços fraternos explicam que ela hoje ainda me fale e que tenhamos ultrapassado os tempos em que eu era o carrasco dos dias dela e ela o tormento do meu ego. Contra todas as expectativas, a cumplicidade dos primeiros tempos sobreviveu. Anos mais tarde, quem passasse pelo Chop, o café simultaneamente mais "in" e alternativo do burgo e residência fixa do vasto grupo de amigos, encontrar-nos-ia sozinhas numa mesa a tagarelar pelos cotovelos. "Mas vocês não falam em casa?!", queixavam-se eles, a tentar apartar-nos do transe com bebidas enviadas "para aquelas duas lá ao fundo".
Nesses anos, o meu rosto quadrado e anguloso metamorfoseou-se numa cara vagamente gótica, giraça com o barulho das luzes mas nunca à altura dos ditames clássicos da simetria e da beleza, e eu compensava os limitados atributos com uma personalidade histriónica e muitos arremedos de anarca-cheia-de-personalidade. Percebi que havia gajos para este mercado, mas ficou-me sempre o terror da comparação. Antes de lhe apresentar namorados, instruía os ditos na proverbial beleza da minha maninha, os olhos grandes cheios de luz, os dentes brancos a refulgir nos lábios, o traço perfeito das sobrancelhas, a testa povoada de cabelo espesso de fazer inveja à Rita Hayworth (que teve de fazer implantes para conseguir aquele desenho de testa em coração, li eu numa revista em Viana), e sobretudo o nariz que desafiou a maldição da família e se tornou perfeito – não fossem os mancebos soçobrar, fracos nos joelhos, perante a súbita aparição, e perceber que tinham escolhido a irmã errada, Avé irmã cheiinha de graça.
Não era só a beleza que eu lhe invejava: era o facto de ela não parecer "self-conscious" (não conheço tradução adequada em português), ao contrário de mim, que tinha sempre demasiadas mãos e gestos para parecer natural ("Posso leeeer?" sedentos de atenção frente à câmara são brandidos periodicamente para me embaraçar). Era a dignidade de rapariguinha orgulhosa que nunca precisou de palhaçadas para que gostassem dela, o mistério dos seus silêncios mais prenhes de significado que toda a minha prolixidade. Ela era mais sólida, mais densa, sedimentada em duras camadas de uma vida interior que eu só vislumbrava nos interstícios da comunicação, e por isso muito mais ela. E era ela a irmã mais velha de facto, se não de direito, que me acalmava os medos histéricos dos ratos que nos invadiram a casa, ainda o Sá Carneiro não tinha morrido na televisão, dispondo no chão da cozinha a louça lilliputiana para o chá das cinco: "Vamos convidar os ratinhos para tomar chá connosco?".
Trinta e poucos anos chegaram para que a nossa relação tivesse muitas faces e para que eu tenha tido nesta irmã muitas irmãs e tenha sido muitas irmãs para ela. E se ao fim deste tempo a operação que apartou as siamesas se pode dizer um sucesso, a cicatriz atesta a união primitiva e original. Os que chegaram depois que me perdoem, mas sem ela eu nunca saberei quem realmente sou, negativo e positivo de mim própria, nostalgia mítica de ter perdido a minha melhor parte.
Créditos da foto / Copyright: Khamael / Paulo Rodrigues, a Portuguese photographer from Flickr based in the Netherlands who captured a timeless little girl in Viana. She reminds me of my sister and I when we were growing up in that same town. Please forgive me for stealing your picture and do complain should you want me to remove it.

Estamos os quatro

A vida a quatro foi sempre recheada de aventuras. Lançamo-nos agora em mais uma, quais salteadores de blogues perdidos. Não percam os próximos episódios!

Thursday 20 November 2008

Também vou pôr uma foto de plantinhas

Outro dia saí à noite. Não foi outro dia, foi no dia 6 de Setembro.
Além dos copos, das gargalhadas com os amigos de sempre, e do ar fresco que apanhei, fumei. Como se não houvesse amanhã. Como se a minha vida dependesse disso. Como...ok, acho que deu para perceber.

Cheguei a casa eram umas verdes quatro da manhã. Que fiz eu? Fui dormir? Lancei-me em pensamentos auto-contemplativos e auto-satisfatórios de coisas por vir? Fui bezerrar pa sala? Não, não. Não.

Esbocei um plano intitulado e passo a citar: "Algumas ideias para um Outono descontraído" em vários pontos.

1. Começar um mestrado (prazo acaba no dia 12 de set!)
2. Organizar ida à Galiza para o casamento do Francis
3. Bike
4. Londres (visitar o Dr. Elastómero Bruke)
5. Caminho de Santiago + a primalhada
6. Começar com futebol e ginásio regularmente
8. Ir a Trás-os-Montes
9. Almoçar com o Pai ao domingo (riam cínicas, riam...)
10. Comprar e aprender a usar um GPS
11. Esboçar plano físico matinal (flexões, abdo, etc)
12. Esboçar um plano de leitura
13. Ir ao Lux

Hoje, dia 20 de novembro, ainda longe de dia 31 de dezembro, estão cumpridos os pontos 1, 2, 3, 6, 8 e 11.

Neste momento urge perguntar: a maria faz mal?!

Comentai!

Beijinhos

Desenganem-se: quatro foi a conta que deus fez


Four: The symbolic meaning of number Four deals with stability and invokes the grounded nature of all things. Consider the four seasons, four directions, four elements, all these amazingly powerful essences wrapped up in the nice square package of Four. Fours represent solidity, calmness, and home. A recurrence of Four in your life may signify the need to get back to your roots, center yourself, or even "plant" yourself. Fours also indicate a need for persistence and endurance.

If it were not for the number Four, we would be lifted into the energy realms like helium balloons: unfettered, ungrounded, and hopelessly lost. We need structure, we need to be grounded, and the number Four is a necessary vibration attesting to this vital need.
To illustrate this necessity, consider just a few of the corner stones linked with the meaning of Four.

Four Elements: Water, Earth, Fire, Air
Four Seasons: Winter, Spring, Summer, Fall
Four Directions: North, South, East, West

Furthermore, consider the pyramids – these phenomenal temples are constructed upon a base of four. Similarly, our homes are founded upon square (four) angles. Over the ages humankind has recognized the stability presented by the number Four and has utilized it to his greatest advantage.

Deve ser por essas e por outras que, apesar das diferenças, somos tão unidos. Sem eles, perdia o rumo e os alicerces, perdia a minha casa. Que sorte sermos quatro!

Vamos lá ver se nos entendemos

Conhecendo-nos como conheço, é bastante provável que este blog dê pano para discussões constantes, críticas e muitas gargalhadas.
Sem censura, linha editorial ou promessas de coerência.
Venham daí essas letras.